(“A Ordem”, 31 março 2011) O que se tem passado, nas últimas semanas, no norte de África? As análises geopolíticas não devem nunca ser divorciadas dos conhecimentos históricos. Ora, a história diz-nos que a bela e fértil faixa costeira que vai do Egipto a Marrocos, passando pela Cirenaica, a Tripolitana, a Tunísia e a Argélia, depois de ter conhecido o domínio cartaginense, constituiu, sob o império de Roma, um florescente centro do cristianismo.
A África foi, entre os séculos III e V, o berço da grande literatura cristã latina, com tertuliano, Cipriano e Agostinho. Dos berberes destas regiões saíram os Papas Victor I, Miltíades, Gelásio II, e grandes santos, como Santa Mónica, mãe de Agostinho, e os mártires Cipriano, Felicidade e Perpétua. Calcula-se que, no século V, metade dos cristãos que então existiam no mundo viviam na África mediterrânica, em cerca de 600 dioceses. Os bispos africanos distinguiam-se pela sua ortodoxia na luta contra as heresias, a ponto de São Próspero da Aquitânia ter escrito: “Oh África, aquilo que tu decretas é aprovado por Roma e seguido pelo Império!”.
Este grande edifício cristão conheceu um período de decadência, bem descrito por Salviano de Marselha, tendo sido destruído pelo vândalos de Genserico, que conquistaram Cartagena em 435. Á dominação feroz dos vândalos arianos, no século VI, sucedeu a dos bizantinos, contra a qual o episcopado africano continuou a defender a sua ortodoxia, opondo-se às inovações dogmáticas de Justiniano e de Heracleion, até à irrupção dos árabes maometanos no norte de África, na segunda metade do século VII.
Só a dupla derrota infligida aos muçulmanos – nas muralhas de bizâncio (716-717) e em Poitiers (732), por Charles Martel – deteve a maré islâmica que se tinha lançado contra a cristandade. Todo o norte de África, desde o Egipto até ao Estreito de Gibraltar, caiu nas mãos dos infiéis, que empreenderam a destruição sistemática de todo e qualquer vestígio cristão. Foram séculos de degradação, durante os quais a África foi despojada da civilização e da prosperidade comercial que tinha conhecido. Só no século XIX é que estas terras voltaram a encontrar, senão a unidade espiritual, pelo menos a unidade política, sob o domínio colonial das potências europeias. Em seguida, e depois das duas guerras mundiais do século XX, o chamado “processo de descolonizaçao”, empreendido com o objectivo de libertar estes povos, teve na realidade o efeito de os entregar nas mãos de sátrapas e de ditadores corruptos, à sombra de uma crescente influência do islamismo.
Hoje em dia, estas regiões estão a ser abaladas por uma série de “revoluções árabes”. Há pelo menos um ponto relativamente ao qual todos os analistas estão de acordo: nada será como dantes nos países do norte de África, depois das “revoluções” de 2011. O que vai mudar? Aí, os observadores divdem-se. Há quem considere que é possível utilizar os extremistas religiosos para derrubar regimes totalitários, na ilusão de depois conseguir impedir que estes extremistas exerçam o poder; e há também quem opine que, para combater o fundamentalismo, é preciso conceder-lhe a possibilidade de aceder democraticamente ao poder, na ilusão de que as responsabilidades do poder imponham a “desislamização” dos muçulmanos radicais.
Os pessimistas prevêem que o islão fundamentalista venha a conquistar os países do Magrebe; os optimistas estão convencidos de que vai abrir-se uma nova era de democracia para estes povos; e os hesitantes, que foram incapazes de prever o que se passou, confessam-se ainda mais incapazes de prever o que vai passar-se a seguir. Uma coisa é certa: não é preciso ter a mania da conspiração para perceber que não há revoluções populares e spontâneas. Os regimes afundam-se quando as respectivas chefias estão corrompidas e quando existe uma minoria organizada que age nestas terras é hoje representada pela Irmandade Muçulmana, que assume denominaçoes diversas, desde a FIS (Frente de Salvação Islâmica) na Argélia, até ao Hamas nos territórios palestinianos.
Actualmente, o ponto de referência da Irmandade Muçulmana não é o islão de Komeini mas, como afirmou Ali Belhadj, o líder da FIS, numa entrevista dada ao Corriere della Sera a 20 Fevereiro de 2011, a Turquia de Recep Tayyip Erdogan, o autor da transformação de uma Turquia pró-ocidental numa Turquia islâmica. A 1 de Março, Erdogan anulou uma visita oficial a Bruxelas a fim de participar nas exéquias de Necmettin Erbakan, o pai do fundamentalismo turco, de quem foi protegido até 2001, altura em que fundo o Partido da Justiòa e do Desenvolvimento. “Os europeus estão doentes. […] Nós temos medicamentos para lhes dar. A Europa será toda ela islâmica. Nós conquistaremos Roma”, tinha declarado Erbakan em Arnheim, na Alemanha, em 1989. Foi também neste sentido que se expressou o xeque Yusuf al Qaradawi, o guia espiritual da Irmandade Muçulmana, numa fatwa promulgada em 2005: “Finalmente, será o islão a governar e a tomar conta do mundo. Um dos sinais da vitória será a conquista de Roma, a ocupação da Europa e a vitória sobre os cristãos”. Este mesmo al Qaradawi regressou triunfalmente ao Egipto após trinta anos de exílio, para dirigir, a 18 de Fevereiro, a oração da “marcha da vitória” que teve lugar na Praça Tahir, no Cairo, na presença de uma multidão imensa, que aclamava a Revolução Árabe.
São Pio X afirmava que, sem o cristianismo, não há civilização no mundo, e que o afastamento dos povos do cristianismo é um sinal de declínio civilizacional. Esta afirmação foi confirmada pelos acontecimentos históricos e políticos que tiveram lugar durante o século XX e o século que começou agora. Tenhamos a certeza de que, enquanto a fé cristã não for novamente o fundamento da civilização nas terras de África, estes povos não conhecerão a paz nem o bemestar, constituindo, pelo contrário, uma fonte de istabilidade e de ameaça para a Europa. E não tenhamos ilusões sobre o advento de “Primaveras árabes”, que poderão vir a ser, para nós, o prelúdio de um glacial Inverno de dhimitude.
Roberto de Mattei
Catedrático de História Moderna na Universidade de Cassino,
historiador, escritor e jornalista