Resposta ao Prof. Peters

O Prof. Edward Peters é um erudito de comprovada ortodoxia, desejoso de limitar os danos da Exortação pós-sinodal Amoris laetitia do Papa Francisco através das armas do direito canônico, em particular do cânon 915 do novo Código, que diz: “Não sejam admitidos à sagrada comunhão os excomungados e os interditos, depois da aplicação ou declaração da pena, e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto” (cf. E. Peters, Three ways to not deal with Canon 915 (Três maneiras de não lidar com o cânon 915), em “The Catholic World Report”, 24 de janeiro de 2017 e Some remarks on the de Mattei interview(Algumas observações sobre a entrevista de de Mattei, em “The Catholic World Report”, 13 de dezembro de 2017, na qual critica minha entrevista ao “Onepeterfive” em 11 de dezembro de 2017).

Para este fim, ele tenta minimizar o “Rescriptum ex audientia SS.mi”, de 5 de junho de 2017, tornando praticamente irrelevantes no plano teológico e canônico os dois documentos anexados a ele (cf.  On the appearance of the pope’s letter to the Argentine bishops in the Acta Apostolicae Sedis (Sobre a publicação da carta do Papa aos bispos argentinos na Acta Apostolicae Sedis), em In the Light of the Law – A Canon Lawyer’s Blog, 4 de dezembro de 2017).

Vou tentar explicar por que essa posição, embora conduzida com boas intenções, parece-me fraca e perigosa.

No tocante ao direito canônico, reporto-me ao estudo de um resoluto jurista italiano (http://www.scuolaecclesiamater.org/2017/12/risposta-ai-dubia-o-eresia-conclamata.html) que se oculta sob o pseudônimo de Augustinus Hipponensis. Ele observa que, quando o cânon 915 menciona “outros que obstinadamente perseveram em pecado grave manifesto”, se refere não só aos divorciados recasados, mas a um grupo maior de pessoas que inclui, por exemplo e como recordou em um ensaio o cardeal Burke, até mesmo políticos que apoiam publicamente regulamentos sobre o aborto ou a eutanásia (Canon 915: The Discipline Regarding the Denial of Holy Communion to Those Obstinately Persevering in Manifest Grave Sin,  in “Periodica de re canonica” (2007), pp. 3-58).

A intenção do Papa Bergoglio não é modificar completamente o cânon 915, mas apenas expulgar dele uma categoria de pessoas (divorciadas e recasadas). Para fazer isso, não era necessário, nem mesmo lógico, mudar a regra geral. O decreto papal pretende mexer somente na proibição particular e específica (aos divorciados recasados), deixando a disposição geral intacta. O cânon 20 do novo Código em vigor, permite ao legislador revogar uma disciplina canônica anterior, mesmo tácita ou implicitamente, quando a lei posterior é incompatível com a anterior, ou quando sejam novamente reorganizadas as matérias abrangidas pela lei anterior. No nosso caso, parece indubitável que, do ponto de vista legislativo, a proibição consagrada na Familiaris Consortio e o direito divino já tinha sido revogada após a Exortação Amoris laetitia. “Hoje, certamente está revogada –  escreve o canonista Italiano –, já que que o Bispo de Roma, fazendo seus  os Critérios básicos (dos bispos argentinos) e elogiando-os como a única hermenêutica possível de sua Exortação, tencionou admitir a categoria dos divorciados recasados ​– ou, melhor dizendo, dos adúlteros – à Comunhão, prevendo para eles uma admissão gradual ao sacramento. Portanto, a proibição – outrora absoluta – não seria mais considerada tão rigorosa. É claro que, como afirma o Conselho Pontifício para os Textos Legislativos na Declaração de 2000, se trata de uma proibição do direito divino. Não há dúvida. E, portanto, surge um conflito indubitável entre o direito humano e o direito divino, o qual deve ser constatado, sem tentar iludi-lo, alegando uma suposta irrelevância dos dois documentos, nem evitando tirar as consequências teológicas e canônicas lógicas”.

Quanto ao aspecto teológico da questão, permito-me definir como errônea, ou pelo menos minimalista, a concepção que o Prof. Peters parece ter do Magistério da Igreja. O magistério ordinário, exercido diariamente pela Igreja, compreende encíclicas, decretos, cartas pastorais e discursos do Papa e bispos de todo o mundo. Quase todo o ensinamento de Pio XII sobre a regulação dos nascimentos foi expresso em discursos, como aqueles feitos às parteiras ou aos médicos católicos, aos quais, a se aplicar a visão redutora do Prof. Peters, se deveria negar o valor do Magistério autêntico. As centenas de documentos da Igreja recolhidos no Enchiridion Symbolorum definitionum declarationum et de rebus fidei et morum Heinrich Denzinger (1819-1883), atualizado ainda hoje, incluindo constituições, bulas, breves, motu proprio, decretos, encíclicas, exortações e cartas apostólica de todo tipo e em conjunto constituem o depósito da fé da Igreja. Poucos destes atos são per seinfalíveis. Mas o próprio magistério ordinário pode se tornar infalível quando é universal, no sentido de ser constantemente repetido.

A Nota doutrinal explicativa da fórmula conclusiva da Professio fidei, da Congregação para a Doutrina da Fé, de 18 de maio de 1998 (AAS, 90 (1998), pp. 542-551), insiste em que uma doutrina deve ser entendida como proposta infalivelmente quando, embora não haja nenhuma definição formal, “essa doutrina, pertencente ao patrimônio do depositum fidei, é ensinada pelo Magistério ordinário e universal” (n. 9). Magistério ordinário universal que, como explica a Congregação para a Doutrina da Fé, para ser considerado infalível deve ser “entendido em sentido dicrônico, e não necessariamente apenas sincrônico” (id., ibid. Nota 27). Portanto, “nas encíclicas Veritatis Splendor, Evangelium Vitae e na própria Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis, o Romano Pontífice pretendeu, embora não de forma solene, confirmar e reafirmar doutrinas que pertencem ao ensinamento do Magistério ordinário e universal, e que, portanto, devem ser mantidas de modo definitivo e inequívoco” (Cardeal Tarcísio Bertone, “A proposito della recezione dei documenti del magistero e del dissenso pubblico”, Osservatore Romano de 20-12-1996). 

Em 2 de dezembro de 2017, o Vaticano anunciou que no dia 5 de junho deste ano o Papa Francisco conferiu o status de “magistério autêntico” à carta enviada em 5 de setembro de 2016 aos bispos da região de Buenos Aires. O texto da Carta, juntamente com os Criterios básicos elaborados pelos bispos argentinos, foram publicados em forma de Epístola Apostólica na Acta Apostolicae Sedis, o registro oficial da Sé Apostólica (fascículo 10, do ano 2016, pp. 1071-1074). Os dois documentos foram promulgados com um reescrito ex audientia SS.mi, assinado pelo Secretário de Estado, D. Pietro Parolin, que, além de organizar a publicação dos dois atos acima mencionados, qualificou-os como uma expressão do Magistério Autêntico (Summus Pontifex decernit ut duo Documenta quae praecedunt edantur para publicação em in situ electronico Vatican et in Actis Apostolicae Sedis, velut Magisterium authenticum).

Este documento, como a Exortação Apostólica Amoris laetitia, pertence certamente ao Magistério ordinário da Igreja. Como bem nota o Pe. Brian Harrison, em um texto apresentado por outro erudito distinto, Prof. Paul Pasqualucci (http://chiesaepostconcilio.blogspot.it/2017/12/crisi-della-chiesa-un-intervento-del.html), as Epistulae apostolicae são de grau superior às Litterae apostolicae, aos Motu Proprios e até mesmo às Constituições Apostólicas, como aquela com a qual João Paulo II promulgou o Catecismo da Igreja Católica. João Paulo usou uma Epístola Apostólica para promulgar o que é considerado uma definição ex cathedra proclamando uma verdade infalível da segunda categoria (tenenda definitiva); isto é, que apenas os homens podem ser sacerdotes ordenados (Ordinatio Sacerdotalis, 1994). O caráter infalível não deriva naturalmente da forma da epístola apostólica, mas do fato de que o ensinamento do Papa confirmou aquele plurissecular da Igreja. Portanto, não erroneamente, o cardeal Francesco Coccopalmerio, presidente do Pontifício Conselho dos Textos Legislativos, declarou 5 de dezembro ao “Catholic News Service”: “O fato de o Papa solicitar que suas cartas e as interpretações dos bispos de Buenos Aires sejam publicadas no AAS significa que Sua Santidade deu a esses documentos uma qualificação particular que os eleva ao nível de ser ensinamentos oficiais da igreja”. “Embora o conteúdo da própria carta do Papa não contenha ensinamentos sobre fé e moral, ele aponta para as interpretações dos bispos argentinos e as confirma como autenticamente refletindo sua própria mente”, disse o cardeal. “Assim, juntos, os dois documnetos se tornaram o autêntico magistério do Santo Padre para toda a Igreja”.

Epístola do Papa Francisco desmancha qualquer tentativa de “hermenêutica da continuidade”, afirmando com autoridade que a única interpretação correta do cap. 8 da Exortação Apostólica Amoris laetitia é aquela apoiada pelos bispos de Buenos Aires em sua carta pastoral de 5 de setembro de 2016 (“No hay otras interpretaciones”). No artigo 6 dessa carta, os bispos afirmam que “caso se chegue a reconhecer que em um caso concreto há limitações que atenuam a responsabilidade e a culpabilidade (cf. 301-302), especialmente quando uma pessoa considere que cairia em uma posterior falta, prejudicando os filhos da nova união, Amoris Laetitia abre a possibilidade do acesso aos sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia”.

Segundo Peters, os dois documentos do Papa Francisco não conteriam declarações sobre fé e moral, mas apenas disposições disciplinares. Mas um ato normativo, com caráter disciplinar em matéria de fé ou moral, é sempre um ato do Magistério. O Denzinger está cheio de disposições disciplinares ou pastorais, como as respostas de Nicolau I (858-867) “Ad consulta vestra” aos búlgaros de 13 de novembro de 866, que devem ser considerados atos de Magistério autênticos. No caso da Epístola do Papa Francisco, não estamos diante de uma regra de caráter disciplinar, mas de um novo ensinamento em matéria moral, que procura claramente admitir os adúlteros à Comunhão, prevendo para eles uma admissão gradual ao Sacramento.

A “hermenêutica da continuidade”, ou seja, a tentativa de interpretar documentos ambíguos ou errôneos à luz da Tradição da Igreja, funcionou mal mesmo quando um Papa como Bento XVI a promoveu. Não é ilusório pretender utilizá-la quando é o próprio Papa que propõe a hermenêutica da descontinuidade? Não é mais simples e lógico recordar que pode haver erro inclusive em atos do Magistério ordinário não infalível? Magistério autêntico não significa de fato “dogmático”, e se o fiel, após ter estudado cuidadosamente a questão, constata de maneira razoavelmente evidente uma oposição clara entre um texto deste Magistério e a lei divina da Igreja, ele pode licitamente suspender ou negar seu assentimento ao documento papal. Esta doutrina é encontrada nos teólogos mais conceituados, como o padre Hugo von Hurter (1832-1914), que afirma: “Se a mente dos fiéis apresenta razões graves e sólidas, especialmente teológicas, contra decisões do magistério autêntico [= não infalível] , tanto episcopal quanto pontifício, será lícito rejeitar o erro, assentir condicionalmente, ou mesmo suspender o assentimento” (Theologiae Dogmaticae Compendium, Wagneriana-Bloud et Barral, Innsbruck-Paris, 1883, vol. I, p. 492).

Recordando as palavras de São Paulo: Mas, se nós mesmos ou um anjo do céu vos anunciar outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema” (Gálatas 1, 8), São Vicente de Lérins comenta: “Mas porque ele diz se nós mesmos e não se eu também? Porque isso significa que, mesmo que Pedro, André, João ou todo o colégio dos apóstolos vos pregassem um evangelho diferente daquele que vos pregamos, seja anátema. Que rigor tremendo! Para afirmar sua fidelidade à fé primitiva, ele não poupou a si mesmo nem aos outros apóstolos” (Commonitorium, capítulo VIII, 2). A possibilidade da infidelidade à Tradição de uma assembleia de bispos, e do próprio Pedro, por mais raro que seja, não é de se excluir. Fechar os olhos para a realidade equivale a embrenhar-se num beco sem saída. A razão e o sensus fidei impõem resistir, mesmo publicamente, a um Papa que sustenta e promove erros e heresias dentro da Igreja.